Os recentes naufrágios de um barco no Mar Mediterrâneo com pelo menos 850 pessoas e de outros dois com 450 são cenas de uma tragédia anunciada – e muito bem anunciada.
Os líderes europeus agora prestam condolências, anunciam “pacote” de medidas, mas sabiam do risco que corriam quando não abriram o bolso no ano passado para investir numa estrutura de operação de resgate na região. A Europa “pagou pra ver” (ou no caso, não quis nem pagar).
Em outubro de 2014, Jonh Dalhuisen, diretor da Anistia Internacional, foi direto ao ponto sobre a troca, na época, da operação Mare Nostrum, do governo italiano, pela Triton, de menor abrangência e liderada por um bloco de países europeus.
“A sugestão de que isso (Triton) vai substituir a Mare Nostrum pode ter consequências catastróficas e mortais no Mediterrâneo”, disse. “A operação Triton não atinge as necessidades de milhares de imigrantes e refugiados, incluindo os que são forçados a fugir da guerra e da perseguição no Oriente Médio e na África”, ressaltou.
Na mesma ocasião, o italiano Bernardino Guardino, do Centro Astalli, um grupo jesuíta de Roma que atende refugiados, afirmou que a Europa “fechava os olhos para o que estava acontecendo” nos países de origem dos imigrantes que tentam a travessia. Outras entidades, como a Save the Children e os Médicos Sem Fronteira, fizeram o mesmo alerta.
Deu no que deu.
A questão é simples: o governo italiano não quis bancar sozinho a fatura de 9 milhões de euros mensais com a Mare Nostrum, que, em um ano de operação (entre outubro de 2013 e outubro de 2014), salvou mais de 100 mil imigrantes em suas águas.
A Mare Nostrum veio em meio à tragédia em 2013 da morte de 366 pessoas afogadas a poucos quilômetros da Ilha de Lampedusa.
Roma decidiu jogar o problema no colo do continente. Surgiu a Triton, comandada por uma agência (Frontex), com o suporte de 20 países e um orçamento de 2,9 milhões de euros por mês.
Em dezembro, a reportagem da Folha acompanhou uma patrulha da Triton. A estrutura é menor e o foco, em tese, seria outro: muito mais o controle de fronteira marítima do que resgatar navios de imigrantes (clique aqui para ler uma série especial publicada na época).
Há duas soluções práticas, de fato, para tentar controlar a dramática situação: evitar o embarque desses barcos da África ou salvá-los no meio do caminho, em águas europeias.
A primeira hipótese é difícil, ainda mais num país instável politicamente como a Líbia, 90% do ponto de origem dessas embarcações.
O diálogo da Europa com suas lideranças praticamente inexiste e o governo italiano já deixou claro que não está disposto, ao menos por enquanto, a arcar com o desgaste de uma intervenção militar.
Diante desse cenário, as lideranças europeias não têm outro caminho no curto prazo que não seja fazer da Triton algo parecido com a Mare Nostrum. Caso contrário, o ano de 2015 vai transformar o Mediterrâneo num cemitério de imigrantes.
Dinheiro parece não ser problema. O jornalista alemão Johannes Beck, da Deutsche Welle, lembra bem que a Europa gasta 50 bilhões de euros por ano com subsídios agrícolas. Por dia, isso é mais do que uma operação Mare Nostrum no ano.
Como alerta o colega alemão, está na hora de a Europa parar de lamentar e agir de fato.