Conversei nesta noite com o perito brasileiro Carlos Eduardo Palhares, do grupo de identificação das vítimas do voo MH17. Ele preside a coordenação do DVI (Identificação de Vítimas de Desastres) da Interpol. Está em Amsterdã na força-tarefa internacional de identificação das vítimas do voo da Malaysia Airlines que caiu no último dia 17 no leste da Ucrânia.
Na entrevista, a primeira dele desde que se juntou ao time de peritos, Palhares, membro da Polícia Federal, explica os problemas por não ter tido acesso ao local da queda do Boeing, dá detalhes do trabalho feito na Holanda e afirma: “Talvez não seja possível identificar todos os corpos se eles (separatistas) não recolheram tudo”.
Os corpos dos passageiros foram recolhidos pelos separatistas pró-Rússia que controlam a área dos destroços. Eram 298 a bordo, mas nem todos teriam sido encontrados pelos rebeldes. Investigadores internacionais, inclusive os peritos, foram impedidos de chegar ao local, na região de Torez, a 70 km de Donetsk. Os separatistas são acusados de terem derrubado o avião com um míssil disparado do solo.
Leia abaixo a íntegra da entrevista com o perito:
Que tipo de trabalho o senhor tem feito em relação ao acidente?
É um procedimento normal da Interpol para ajudar na identificação. O governo da Ucrânia aceitou e foi mandada uma equipe para fazer o diagnóstico da situação. Eu presido a coordenação do DVI ((Identificação de Vítimas de Desastres) da Interpol. Num primeiro momento, a ideia era que a gente fosse para o local onde caiu o avião, para fazer a análise da condição dos corpos, como se faria o resgate, como teria de armazenar.
No final das contas, os corpos foram retirados pelo pessoal que controla a região, que enviou os corpos por um trem para Kharkov, onde eu estava. O que aconteceu na Ucrânia foi meramente um trabalho de preparação dos corpos para identificação. A gente não fez nenhum procedimento lá. Não fomos até o local para fazer a recuperação dos corpos porque já tinham sido recolhidos pelos separatistas. Depois, fomos convidados pelas autoridades holandesas para acompanhar o trabalho na Holanda para verificar se todos os procedimentos realizados aqui estão de acordo com as recomendações da Interpol.
O que muda na perícia quando os corpos são recolhidos dessa maneira?
É importante ter em mente que uma coisa é a preocupação com a identificação e outra com a investigação. Muitas vezes o que é trabalhado na identificação é importante para a investigação. Num acidente aéreo, você não leva em consideração só a caixa-preta, mas tudo que está associado e os corpos também são associados ao desastre.
O corpo também traz informação que pode auxiliar na investigação. Do ponto de vista da identificação, o que está em volta do corpo pode ajudar na agilização do processo. Se do lado do corpo é encontrado um passaporte, é anotado o número, o corpo pode estar até numa condição ruim, mas já é possível fazer uma vinculação com uma biografia. Tendo o passaporte no bolso, por exemplo, há um chip com impressão digital.
E nesse caso não veio nada vinculado para vocês?
Muitos vieram sem informação. Poderia ser uma bolsa do lado, que pode trazer uma informação, mesmo que não esteja colada à pessoa. Vieram só peças grudadas no corpo, como aliança, um anel, mais difícil de tirar. A cadeira do avião tem um registro, por exemplo. Geralmente, a letra e a fileira ficam em cima, só que a poltrona, quando é montada, tem um código associado ao local.
Se você encontra o corpo numa cadeira, é possível associá-la ao passageiro e aquilo é muito importante, porque em um voo lotado como esse dificilmente alguém muda de poltrona. De imediato, é mais importante que qualquer outro trabalho que a gente faz. O acesso à cena num primeiro momento teria sido muito importante, poderia acelerar a identificação dos corpos, mas isso não ocorreu. É como se tivesse correndo atrás do prejuízo. Se não conseguiu ter acesso, tenta buscar de outra maneira.
O que deveria ter sido feito para facilitar a identificação?
Isolar a área e fazer uma retirada dos corpos sistematizada, uma equipe que trabalha com isso ter ido ao local, o que não aconteceu. A identificação vai acontecer, mas vai demorar mais. Não é irremediável. A identificação segue uma metodologia técnica, isenta de subjetividades. São três métodos na Interpol: DNA, impressão digital e arcada dentária. No local, você coleta informações secundárias, que aceleram muito uma identificação.
Até que ponto o trabalho de identificação ajuda na investigação das causas do acidente?
O corpo no geral pode trazer informação referente às causas do acidente. Por suposição, se foi uma explosão, os corpos que estavam mais próximos, vão sofrer mais na pressão. Pelo exame dos corpos, em teoria, é possível tirar algumas conclusões a respeito da dinâmica do acidente. Mas no caso em questão, tem uma equipe cuidando só da investigação.
Por que é fundamental preservar a cena do acidente?
A queda de um avião é um local de crime. Independentemente do acidente, você trata assim. Você só tem uma chance de um trabalho bem feito, que é a primeira vez. Se num primeiro momento você não faz, já é ruim. E aquela informação que você não pegou, não pega nunca mais. Nesse caso, do ponto de vista de investigação, vários elementos se perderam que nunca vão ser recuperados. Quais são? Não sei, porque se perderam. O trabalho do perito é como chegar num final de festa, com as cadeiras bagunçadas e tentar remontar o que aconteceu ali, você consegue recuperar algumas coisas, mas o local tem de estar idôneo, e esse local na Ucrânia é muito complexo.
Como é o trabalho de todos os envolvidos na identificação?
De Kharkov, na Ucrânia, fomos todos para Amsterdã, na Holanda. Há uma estrutura que nunca foi montada na história de identificação de vítimas. Aproximadamente 200 pessoas técnicas examinando os corpos. Algo fora do comum. São várias linhas de trabalhos, da Alemanha, da Holanda, outra do Reino Unido, uma da Austrália. Há ainda um da Malásia e também da Indonésia. A tarefa deve levar meses. Talvez não seja possível identificar todos os corpos se eles (separatistas) não recolheram tudo.
E o que a Interpol faz?
Fui para lá para uma missão de diagnóstico, analisar a cena, o que vai ser necessário para recolher os corpos com segurança, armazená-los, para depois identificar, mas isso não foi feito. Então só preparamos os corpos para ir para Amsterdã, onde estão sendo examinados. É importante dizer que quando aconteceu o acidente da AirFrance, em 2009, mudou o paradigma no Brasil, no uso de padrões internacionais. Hoje o Brasil é tão reconhecido nesse campo de identificação, que ocupa a presidência do principal grupo internacional de identificação, o da Interpol.
O senhor trabalhou nos acidentes da TAM (2007) e da GOL (2006)?
Eu vi como convidado investigação do acidente da GOL e trabalhei como perito federal na investigação do acidente da TAM. No da AirFrance, trabalhei na coordenação da identificação das vítimas. Uma coisa que temos tentado no Brasil é que o perito tenha acesso rápido ao local para identificação. No caso da TAM, foram bombeiros. Na verdade, é um trabalho conjunto que tem de acontecer. A perícia não faz sozinha a atividade, mas suportada por outras equipes. Primeiro, tem de se preocupar com feridos, quem precisa de atendimento. E, depois, você vai fazer qualquer tipo de ação de identificação das vítimas.