O baú de cartas do primeiro ministro negro do STF

Por Leandro Colon

No dia 30 de maio de 1888, a Princesa Regente Isabel assinou a nomeação do mineiro Pedro Lessa para professor substituto da Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo de São Francisco. Escreveu assim:

“Atendendo ao merecimento e às habilidades que em concurso mostrou o doutor Pedro Augusto Carneiro Lessa, hei por bem, em nome do Imperador, nomeá-lo para o logar de lente substituto da Faculdade de Direito de S. Paulo, com o vencimento que lhe competir. Palácio do Rio de Janeiro, em trinta de maio de mil oitocentos e oitenta e oito, sexagésimo sétimo da Independência e do Império. Princeza Imperial Regente”.

Veja o documento, assinado pela princesa:

Documento assinando pela Princesa Isabel

Pedro Lessa conseguiu enfim o cargo que não obtivera um ano antes, quando deixou de ser nomeado apesar de uma primeira colocação no concurso. Na época, protestou por escrito.

A nomeação para professor em 1888 ocorreu 17 dias depois de a mesma Princesa Isabel sancionar a Lei Áurea, que sepultou a escravidão no Brasil.

A história não registra essa proximidade de datas. Talvez pelo conservadorismo de não admitir que ali um descendente de negros fora escolhido professor da faculdade mais prestigiada da sociedade paulista da época um ano depois de ser barrado.

Da mesma maneira que a história (e até a família de Pedro Lessa) demorou para aceitar publicamente ter sido ele o primeiro negro ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), nomeado pelo presidente – e conterrâneo – Afonso Pena, no dia 26 de outubro de 1907 para a vaga de Lúcio de Mendonça.

O segundo negro foi Hermenegildo de Barros. O ministro Joaquim Barbosa, que acaba de anunciar sua aposentadoria, foi o terceiro, mas o primeiro presidente do Supremo.

No livro “História do Supremo Tribunal Federal”, da historiadora Leda Boechat, Lessa aparece como o primeiro da pele negra a assumir uma cadeira. Era, nas palavras dela, um “mulato claro”.

No documento ‘Memória jurisprudencial Ministro Pedro Lessa”, do STF, ele é tratado como “estudante mineiro de ascendência negra, abolicionista e republicano”.  Seu maior inimigo, Epitácio Pessoa, o acusava de disfarçar o corte de cabelo por causa da cor de pele.

Reportagem publicada na edição impressa da Folha de domingo (1) revelou detalhes de um baú de cartas inéditas de Lessa, sob a guarda da bisneta Lúcia Lessa, 72 anos, em Teresópolis. Estive lá com a fotógrafa Luciana Withaker. A bisneta me contou que vai doar o material para a Fundação Casa de Rui Barbosa nas próximas semanas.

Na edição de domingo, foram publicadas duas cartas: uma do romancista Coelho Neto, sobre uma campanha dentro da ABL (Academia Brasileira de Letras), e um convite do Barão do Rio Branco. Há muito mais documentos, como o ofício assinado pela Princesa Isabel em 1888 e esse bilhete abaixo do jurista e imortal Clóvis Beviláquia e sua mulher, Amélia:

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A morte de Lessa comoveu o Rio de Janeiro, em 25 de julho de 1921. O STF declarou luto por 15 dias, quebrando a tradição dos protocolares oito. A família guarda até hoje lembrança da missa de sétimo dia:

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Por ocasião da morte , Rui Barbosa enviou um telegrama à família do ex-ministro. O rascunho da resposta dos parentes estava até hoje sob segredo, na caixa em Teresópolis.

Coube ao genro Francisco Solano, casado com a filha de Lessa, enviar a carta, uma semana depois, a Rui Barbosa. Diz trecho dela (veja abaixo parte da carta): “Das manifestações que temos recebido, nenhuma nos tocou tão fundo o coração como as palavras de Vossa Excelência, nenhuma honrou mais, nem tanto, a memória do meu sogro”.

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Pedro Lessa nasceu em 25 de setembro de 1859, em Serro, em Minas Gerais. Filho do coronel José Pedro Lessa e de Francisca Amália.  Foi estudar em São Paulo em 1879, quando se matriculou na faculdade de Direito, onde em 1883 conseguiu o grau de Bacharel. Participou da imprensa estudantil e chegou a ser advogado do tradicional Centro Acadêmico Onze de Agosto.

Além da nomeação para professor substituto de Direito, assinada pela Princesa Isabel em 1888, também está no acervo inédito em Teresópolis o documento abaixo, de 1891, que leva o nome do Marechal Deodoro da Fonseca, transformando Lessa em professor titular da mesma faculdade.

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Os documentos mostram o prestígio político e jurídico do ex-ministro do STF, que morreu em 25 de julho de 1921 de septicemia depois de 50 dias de cama. Era um homem requisitado para se envolver em questões políticas, exaltado por discursos exaltados e longos votos no Supremo.

Assim como Joaquim Barbosa, Lessa era dono de um temperamento forte quando questionados pelos colegas. Conhecido pelo leque preto que levava sempre às mãos e o olhar superior com que tratava adversários. Considerado, muitas vezes, sarcástico, irônico, arrogante e autoritário. Era de uma “empáfia ilimitada”, diz o livro de Leda Boechat. “Toda vez que uma voz maior se alevantava no STF ou igualava-se a ele, era inevitável o destempero de sua parte”.

Para ela, a falta de “alvura” na pele talvez possa justificar esse estilo meio que auto-defensivo e exaltado nos revides aos colegas de corte. “Parece-me difícil entendê-lo sem levar em conta tal motivo, mesmo inconsciente”.

É um dos precursores da discussão sobre o habeas-corpus para a garantia da liberdade de imprensa, do direito de greve, da religião, da posse a governadores e deputados. Também antecipou o debate sobre dano moral no sistema jurídico nacional. Rui Barbosa, de quem era grande amigo, o chamava de o “juiz mais completo” da época.

Antes de chegar ao STF, Lessa foi chefe da polícia de São Paulo e deputado estadual. Hoje, é nome de rua no Rio de Janeiro, de um fórum em São Paulo e até de praça. Recebeu o apelido de o “Marshal brasileiro”, conforme relata biografia de Lessa escrita pelo advogado Roberto Rosas, ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

A sua casa, na rua Voluntários, no Rio, era centro de reuniões de intelectuais da época. Não à toa que no acervo da família há dezenas de correspondências de amigos da ABL, escritores, jornalistas.

Há também um material totalmente familiar, como a carta a seguir, de  6 de abril de 1914, em que Pedro Lessa escreve ao genro Francisco Solano e revela preocupação com as febres constantes da neta Marina (a letra é difícil de entender):

“Qualquer incômodo dessa menina me aflige extraordinariamente”.

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Em uma outra carta, escrita no dia 10 de março de 1886, a irmã Estefânia revela saudades e pede notícias do jovem Pedro Lessa, apelidado de “Nhonô”:

“Há poucos dias Papai recebeu uma carta sua. Há muito que você não nos diz nada a respeito de sua viagem. Quando nos escrever, diga-nos quando é que pretende vir cá, pois há muito mais de um ano que não o vemos e já estamos com muitas saudades sua”.

Escrever cartas à família não parecia ser um hábito rotineiro de Pedro Lessa, conforme reclama outra irmã, Ritinha:

“O que não desejamos é que assim continue por muito tempo, sem conhecermos  Paula, mas que venhas brevemente para nos dar o prazer de vê-la e abraça-la”.

Paula de Aguiar e Castro foi a mulher de Pedro Lessa. Morreu nova. Tiveram dois filhos.